Postagens

Mostrando postagens de 2025

Osteopatia: Entre a Tradição e a Ciência — Como Honrar Nossas Raízes sem Cair em Mitos

          A osteopatia nasceu de uma ousadia. No final do século XIX, Andrew Taylor Still olhou para o corpo humano e enxergou algo que a medicina da época ignorava: um sistema integrado, capaz de autorregulação, onde saúde e doença não eram meros acidentes, mas respostas complexas da natureza.           Essa visão global nos trouxe até aqui. Mas junto dela vieram explicações que, com o tempo, se cristalizaram em certezas. Hoje, precisamos de coragem para revisitar essas certezas, separando o que é raiz viva do que virou mito. Osteopatia Musculoesquelética           No princípio, falávamos de lesão primária e disfunção somática , acreditando que um bloqueio sutil poderia desorganizar todo o corpo. A Lei da Artéria reforçava a ideia de que a circulação era chave para a saúde. Mais tarde, o possibilismo anatômico e o modelo de tensegridade ajudaram a explicar como uma restrição local poderi...

O Diafragma Respiratório na Visão Osteopática: Mito, Método e Evidência

 A literatura osteopática frequentemente eleva o diafragma a um papel central na saúde global do corpo, atribuindo a ele funções que vão além da respiração — como o bombeamento linfático, regulação visceral e impacto direto sobre dores na coluna. Mas até que ponto essa visão tem respaldo científico consistente? 1. Fundamentos Teóricos — Uma Visão Holística ou Extrapolada? Sagrillo & Frigo (2016) revisaram estudos que relacionam o diafragma a dores na lombar, cervical, refluxo gastroesofágico e ao sistema linfático. Ainda que defendam um conceito de “cadeias disfuncionais”, a revisão encontrou apenas  10 artigos compatíveis , muitos com viés e baixa robustez metodológica. Os argumentos anatômicos destacam: Relações fasciais  entre o diafragma e musculatura lombar ou pélvica (como psoas, quadrado lombar). Inervação frênica (C3‑C5)  implicando a conexão direta com segmentos cervicais, potencialmente explicando dores referidas. 2. Evidências Empíricas — O Que Dizem o...

Dor no Ombro por 22 Anos: Quando a Hérnia Diafragmática É a Verdadeira Causa

  Um Caso Inusitado de Diagnóstico Tardio Este relato descreve o caso de uma mulher de 52 anos que desenvolveu  dor crônica no ombro esquerdo  imediatamente após um acidente automotivo, sem nenhuma melhora por  22 anos , apesar de diversas avaliações ortopédicas e tratamentos convencionais (p.ex., fisioterapia, injeções e cirurgia local). Somente duas décadas após o trauma, sintomas abdominais intermitentes (dor e náuseas) motivaram uma tomografia computadorizada — que revelou uma  hérnia diafragmática pós-traumática esquerda . A lesão, provavelmente originada de fraturas de costelas não diagnosticadas, foi então reparada via laparoscopia. Após isso,  a dor no ombro desapareceu imediatamente. Lições Diagnósticas Dor referida não vem sempre da estrutura local O sintoma principal era ombro, mas a origem estava no diafragma irritado. Esse tipo de dor  somática referida por via frênica  é raramente considerada na prática clínica musculoesquelética. Tr...

Conexão Corporal, Ansiedade e a Promessa da Osteopatia: Quando o Toque Cura — ou só Acalma?

  O artigo "Effects of a myofascial and lymphatic osteopathic manipulative treatment protocol on mood and body connection" (Levy & Jung, 2025) é, à primeira vista, um daqueles trabalhos que aquecem o coração de quem acredita que o toque pode transformar. Que a fascia sente. Que a mente e o corpo dançam em sincronia e que a osteopatia pode mudar o ritmo desse baile. Existe algo de muito bonito nesse estudo. Uma proposta integrativa. Uma tentativa de romper a barreira entre o físico e o psíquico. Um protocolo padronizado que tenta fugir do “tratamento black box” tão comum nas pesquisas em OMT. A estrutura do estudo é elegante: protocolo bem descrito, instrumentos validados (DASS, STAI, SBC), análise estatística com GEE e Cohen’s d, efeitos clinicamente significativos em ansiedade, depressão e dissociação corporal. Um desenho limpo, sem interferências terapêuticas externas. E, ainda por cima, publicado em uma revista de acesso aberto, com linguagem clara e acessível. ...

Síndrome da Dor do Trocanter Maior e Sistema de Movimento: Um Novo Olhar para a Dor no Quadril

             A dor na região lateral do quadril, frequentemente diagnosticada como Síndrome Dolorosa do Grande Trocanter (GTPS), é um desafio comum na prática clínica. Por muito tempo, atribuímos essa dor à bursite trocantérica isoladamente, mas os estudos atuais mostram que a realidade é bem mais complexa. A classificação baseada no sistema de movimento, como propõe o estudo de Disantis e Martin (2022), oferece uma abordagem mais individualizada e eficaz. O Desafio Diagnóstico GTPS não é uma entidade única. Pode envolver tendinopatias dos glúteos médio e mínimo, inflamações da bursa trocantérica, ou ainda o atrito da banda iliotibial. O problema é que os testes clínicos convencionais têm baixa acurácia, e exames de imagem nem sempre ajudam. Segundo os autores, o foco deve ser na análise do movimento e da função – não apenas na dor localizada. Classificação Funcional: A Chave do Tratamento A proposta do artigo é simples e poderosa: classificar os pacie...

Síndrome Miofascial: O Diagnóstico que Preenche a Lacuna Entre a Dor do Paciente e o Que Ainda Não Compreendemos

          Na prática clínica osteopática, poucos quadros são tão frequentes — e tão escorregadios — quanto a chamada síndrome dolorosa miofascial . Dor difusa, tensão aumentada, ponto-gatilho visível, banda tensa, limitação funcional localizada. O script parece familiar. Mas será que sabemos realmente o que estamos tratando? Ou será que estamos apenas dando um nome plausível para aquilo que, no fundo, ainda não conseguimos entender com clareza?           A tentação de rotular como SDM é grande. Afinal, o exame palpatório muitas vezes confirma: há hiperreatividade muscular, dor referida, espasmo local, e melhora aparente após técnicas de liberação. Mas precisamos de uma honestidade radical com nossa própria prática: quantas dessas SDMs resistem ao tratamento, recidivam ou retornam sob nova forma?           Mais ainda: quantas dessas “síndromes miofasciais” coexistem com outros diagnósticos reais — q...

Mielopatia Cervical: Diagnóstico, Diferenciais e Diretrizes Baseadas em Evidência

 A mielopatia cervical é uma condição neurológica progressiva resultante da compressão da medula espinhal na região cervical, sendo uma das principais causas de disfunção neurológica em adultos acima dos 50 anos. O reconhecimento precoce e o manejo adequado são essenciais para evitar déficits permanentes. Quadro Clínico: Quando Suspeitar? Os sinais e sintomas mais comuns incluem: Fraqueza e perda de destreza em mãos e membros superiores; Alterações na marcha (marcha espástica ou instável); Hiperreflexia e presença de sinais patológicos (Babinski, Hoffman); Urgência urinária ou disfunções esfincterianas; Dormência ou sensação de queimação nos braços, mãos e pernas. Sintomas iniciais podem ser sutis e confundidos com condições menos graves, como radiculopatia cervical ou síndrome do túnel do carpo. Critérios Clínicos de Alerta Estudos como o de Nouri et al. (2015) propõem a avaliação de três domínios principais: Função da mão  (escrita, abotoar camisa); Alterações de marcha ...

Terapia Craniossacral: Entre a Intuição e a Ausência de Evidência

 A terapia craniossacral (TCS) é frequentemente apresentada como uma técnica manual sutil e poderosa, capaz de tratar uma infinidade de disfunções — de cefaleias a transtornos do espectro autista — por meio de toques quase imperceptíveis no crânio e sacro. No entanto, quando submetida ao crivo da ciência e da metodologia rigorosa, essa abordagem mostra-se frágil, baseada em premissas fisiológicas inconsistentes, baixa plausibilidade biológica e pobre sustentação empírica. As bases teóricas: onde está a coerência fisiológica? A TCS parte da premissa de que existe um "ritmo craniossacral" independente, gerado pela flutuação do líquido cerebroespinhal, que pode ser percebido pelas mãos do terapeuta treinado. Aqui começa o problema: Não há evidência fisiológica robusta que comprove a existência desse ritmo como um fenômeno autônomo e palpável.  Estudos de histologia, fisiologia e neuroanatomia não sustentam essa hipótese. A mobilidade dos ossos cranianos em adultos, proposta como...

Manipulações Cervicais: Benefícios, Riscos e o Papel da Prática Baseada em Evidências

 As manipulações cervicais são amplamente utilizadas por fisioterapeutas, quiropraxistas e osteopatas no tratamento de condições musculoesqueléticas da coluna cervical, como cefaleias cervicogênicas, dor cervical inespecífica e restrições de mobilidade. Mas afinal, qual é o saldo entre benefício e risco? O que diz a literatura científica? E como devemos posicionar essa técnica na prática clínica? Benefícios Evidenciados Estudos clínicos e revisões sistemáticas apontam para benefícios relevantes: Redução da dor e melhora da função  em casos de dor cervical aguda e subaguda. Melhora na amplitude de movimento  da coluna cervical. Efeito positivo sobre cefaleias cervicogênicas , especialmente quando associadas a restrição articular. Impactos neurofisiológicos positivos  imediatos, como modulação da dor, alteração de limiares de dor à pressão e relaxamento muscular. Exemplos de evidências: Gross et al. (2015) demonstraram, em uma revisão Cochrane, que manipulações cervica...

O Últimato Sobre a Sacroilíaca: Evidência, Diagnóstico e o Papel do Fisioterapeuta

 A articulação sacroilíaca (ASI) é uma velha conhecida dos profissionais que lidam com dor lombopélvica. Já foi rotulada como a origem de todos os males, depois descartada como irrelevante, e agora… retorna como um desafio clínico que exige precisão, conhecimento e uma boa dose de senso crítico. Neste ultimato, vamos reunir os principais pontos discutidos no blog  Osteopatia Científica  sobre a ASI — do diagnóstico à abordagem terapêutica — com base em evidências atuais e sugestões clínicas aplicáveis à prática. 1. Diagnóstico: o mito da palpação Testes de mobilidade como Gillet, inclinação anterior e similares são amplamente usados. Mas a revisão sistemática de Szadek et al. (2009) nos dá o primeiro choque de realidade:  baixa confiabilidade interavaliadores e pouca validade clínica . Ou seja,  palpar mobilidade sacroilíaca continua sendo mais arte do que ciência . Dica clínica:  Use testes provocativos validados (cluster de Laslett, por exemplo) e combine...

Testes de Mobilidade da Sacroilíaca: Precisão ou Ilusão Clínica?

 A articulação sacroilíaca (ASI) é frequentemente culpada por dores lombares e pélvicas. Mas será que conseguimos realmente avaliá-la com precisão na prática clínica? A revisão sistemática publicada por Szadek et al. lança luz sobre um tema controverso:  a confiabilidade e validade dos testes clínicos de mobilidade da ASI . O Que o Estudo Investigou? O objetivo do artigo foi analisar as  propriedades clinimétricas  dos testes comumente utilizados para avaliar a mobilidade da sacroilíaca. Entre eles: Teste de Gillet (ou teste de marcha de Stork) Teste de Flexão em Pé - TFP Teste de mobilidade posterior Teste de flexão ativa da perna reta A revisão reuniu estudos que avaliaram  confiabilidade intra e interavaliadores ,  validade  (em comparação com exames de imagem ou injeções diagnósticas) e  acurácia diagnóstica . E o Resultado? Prepare-se: a maioria dos testes analisados  não apresentou propriedades clinimétricas aceitáveis . Eis os principa...

Manipulações Vertebrais e Sistema Nervoso: Efeitos Imediatos Sob a Lupa Científica

 Por muito tempo, os efeitos da terapia manual vertebral foram atribuídos quase exclusivamente a ajustes biomecânicos. Mas e se os principais efeitos fossem, na verdade, neurológicos? A revisão sistemática liderada por Martínez-Segura et al. (2021) oferece uma nova lente sobre o impacto imediato da terapia manual no sistema nervoso. O Que o Estudo Investigou? A revisão avaliou 21 estudos clínicos que exploraram os  efeitos de curto prazo da terapia manual vertebral (SMT) sobre marcadores neurológicos em pacientes com dor musculoesquelética. O objetivo: entender como o sistema nervoso — central e periférico — responde à manipulação. Principais Achados Os autores encontraram  alterações significativas em diversos níveis neurofisiológicos , como: Aumento no limiar de dor por pressão (PPT)  — ou seja, menor sensibilidade à dor após a SMT. Ativação das vias inibitórias descendentes da dor , especialmente o sistema opioide endógeno. Modulação da excitabilidade cortical , s...

Dor Facetária Cervical: Entre a Degeneração e o Trauma em Chicote

 A dor cervical é uma das principais causas de incapacidade funcional no mundo moderno, e dentro desse universo clínico, a dor facetária cervical representa uma entidade frequentemente negligenciada. O estudo "Cervical facet pain: Degenerative alterations and whiplash-associated disorder" oferece uma análise aprofundada da dor originada nas articulações zigapofisárias cervicais, considerando tanto as alterações degenerativas quanto os mecanismos traumáticos associados ao whiplash. Entendendo a Dor Facetária Cervical As articulações facetárias cervicais são estruturas sinoviais que contribuem para a mobilidade e estabilidade da coluna cervical. Alterações degenerativas nessas articulações, como osteófitos e esclerose subcondral, estão frequentemente associadas à dor crônica. A prevalência da dor facetária em indivíduos com cervicalgia pode chegar a 60%, especialmente em faixas etárias mais avançadas. Trauma em Chicote (Whiplash) e Facetas O whiplash-associated disorder (WAD), ...