Osteopatia Além do Aparelho Locomotor: O Que os Dados de Austrália e Nova Zelândia Têm a Nos Dizer?

 Você é do time que acredita que osteopatia trata “qualquer coisa”? Ou prefere se manter no campo das evidências, onde as articulações não curam gastrite, e mobilizações sacroilíacas não resolvem sinusite?

Um estudo recente publicado em 2023 nos ajuda a entender melhor esse cenário. Intitulado “Characteristics of Australian and New Zealand osteopaths who treat patients presenting with non-musculoskeletal complaints”, o artigo apresenta dados coletados de duas redes de pesquisa clínica (practice-based research networks — PBRNs) envolvendo 1201 osteopatas.

O objetivo? Analisar o perfil dos osteopatas que afirmam tratar condições não musculoesqueléticas (não-ME). O que eles tratam? Quais técnicas usam? O que os diferencia dos colegas que mantêm o foco musculoesquelético?

Quais “condições não musculoesqueléticas” foram relatadas?

Os autores listam uma série de condições que os osteopatas afirmaram tratar, incluindo:

  • Problemas digestivos (ex: refluxo, constipação)

  • Cefaleias não mecânicas

  • Fadiga crônica

  • Distúrbios do sono

  • Condições pediátricas (ex: cólicas, refluxo infantil)

  • E até distúrbios emocionais, como ansiedade e estresse.

Sim, você leu certo. Há quem esteja usando manipulação craniana ou visceral como abordagem principal para quadros clínicos complexos que, na medicina baseada em evidências, exigem critérios diagnósticos rígidos, exames complementares e protocolos multidisciplinares de cuidado.

Perfil de quem trata “além do sistema músculo-esquelético”

Segundo o estudo, os osteopatas que tratam condições não-ME têm algumas características distintas:

  • Maior tempo de prática clínica

  • Formação prévia em outras áreas da saúde

  • Frequente uso de técnicas cranianas e viscerais

  • Forte influência de escolas de osteopatia com viés tradicionalista

Além disso, a crença na eficácia da osteopatia para condições sistêmicas foi um fator determinante. O estudo sugere que a prática pode ser sustentada menos por evidência e mais por convicções pessoais e formação filosófica.

Mas... e as evidências?

Essa é a parte onde o chão treme — ou pelo menos deveria.

As condições citadas como “tratáveis” pela osteopatia carecem de base científica robusta. Revisões sistemáticas têm sido repetidamente categóricas: não há evidência clínica confiável de que manipulações ou técnicas cranianas/viscerais tratem com eficácia condições como refluxo, otite média, cólica infantil ou asma.

A prática baseada em evidências requer que a intervenção seja validada, reproduzível, com risco-benefício aceitável. Tratar cefaleia tensional com abordagem cervical pode fazer sentido. Mas afirmar que se trata fadiga crônica ou disfunções imunológicas com manobras cranianas ultrapassa os limites do razoável — e beira o charlatanismo quando não é devidamente informado ao paciente.

Qual o risco de “expandir” demais a atuação?

O risco é duplo: ético e científico.

  1. Ético, porque trata-se de pacientes vulneráveis, que muitas vezes buscaram soluções sem sucesso e podem ser seduzidos por promessas não comprovadas.

  2. Científico, porque dilui a credibilidade da osteopatia baseada em evidências, afastando-a dos sistemas de saúde sérios e da integração interdisciplinar.

Conclusão

O estudo oferece uma fotografia valiosa sobre como parte da osteopatia em países como Austrália e Nova Zelândia ainda mantém um pé no tradicionalismo metafísico, enquanto outra parte busca se alicerçar em práticas fundamentadas na ciência.

Se a osteopatia deseja caminhar rumo à consolidação como profissão de saúde séria, integrada e respeitada, precisa urgentemente abandonar o “tudo é osteopatia” e reconhecer que há fronteiras entre técnica, filosofia e evidência.


Referência
Verdon C, Orrock P, Steffens D, et al. Characteristics of Australian and New Zealand osteopaths who treat patients presenting with non-musculoskeletal complaints: outcomes from two practice-based research networks. BMC Health Services Research. 2023;23(1):1302. 

Prof Leonardo Nascimento, Ft Msc DO PhD
Fisioterapeuta
Pós-graduado em Fisioterapia Ortopédica e Desportiva pela UNICID/SP
Especialista em Terapia Manual e Postural pela Cesumar/PR
Especialista em Osteopatia pela Universidade Castelo Branco/RJ
Osteopata Certificado pela Escola de Madrid
Professor da Escola de Madrid Internacional
Mestre em Ciências – USP
Diplomado em Osteopatia pela SEFO (Scientific European Federation Osteopaths)
Doutor em Neurociências e Comportamento - FMUSP
É um estudioso da área de palpação e sensibilidade manual tátil no Laboratório de Fisioterapia e Comportamento na Universidade de São Paulo – USP
Colaborador do DO‑Touch - AOA (American Osteopathic Association)
Coordenador de Grupos de Pesquisas da Escola de Madrid Internacional
Host do Podcast Osteopatia Científica
Revisor de Periódicos de Fisioterapia e Osteopatia

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