ATM e Refluxo: Uma Relação que Vai Muito Além da Azia

 A dor na articulação temporomandibular (ATM) é um dos quadros musculoesqueléticos mais complexos e multifatoriais que um clínico pode enfrentar. Agora imagine que, além do estresse, da oclusão e da sobrecarga muscular, o paciente ainda sofre de refluxo gastroesofágico (DRGE). Parece improvável? Pois é exatamente essa possível correlação que este estudo caso-controle investigou — e os resultados são, no mínimo, curiosos.

Qual a Hipótese do Estudo?

Os autores partiram da hipótese de que pacientes com DRGE poderiam ter uma prevalência maior de disfunções temporomandibulares (DTMs). A base dessa ideia está no eixo cérebro-intestino-mandíbula, onde estresse, distúrbios autonômicos e inflamação sistêmica poderiam ser fatores de ligação entre as duas condições.

Metodologia

Foram avaliados 100 pacientes com diagnóstico confirmado de DRGE (via endoscopia e sintomatologia) e comparados a 100 controles saudáveis, pareados por idade e sexo. Todos os participantes passaram por exame clínico padronizado para diagnóstico de DTM, seguindo os critérios do RDC/TMD (Research Diagnostic Criteria for Temporomandibular Disorders).

Resultados

• Pacientes com DRGE tiveram uma prevalência significativamente maior de DTMs em comparação com os controles.

• A forma mais comum de DTM nesse grupo foi a miopática, seguida pelas formas articulares (disfunções intra-articulares).

• A dor muscular orofacial e a limitação funcional foram mais frequentes no grupo com DRGE.

• Foi sugerido que eventos repetidos de refluxo, hipersensibilidade visceral e fatores psicossociais (como ansiedade e distúrbios do sono) podem aumentar a percepção da dor e gerar tensão na musculatura mastigatória.

Crítica ao Estudo

Embora o estudo seja relevante e levante uma hipótese clínica plausível, algumas limitações metodológicas merecem destaque:

• O desenho caso-controle não permite estabelecer causalidade, apenas associação.

• O uso de autorreporte para alguns sintomas, especialmente relacionados ao estresse e sono, pode enviesar os resultados.

• Faltaram mediadores biológicos objetivos (como marcadores inflamatórios ou avaliações autonômicas) para confirmar os mecanismos sugeridos.

• Não foi avaliada a direção temporal da associação: o refluxo causa DTM ou a dor crônica da DTM piora o refluxo?

Implicações Clínicas

Apesar das limitações, o estudo alerta para algo importante: pacientes com dor orofacial persistente devem ser avaliados de forma integral. Sintomas digestivos, padrões de sono e condições de estresse podem estar silenciosamente contribuindo para o quadro de dor e disfunção da ATM. Ignorar isso é tratar apenas a ponta do iceberg.

Conclusão

Este estudo reforça que o corpo humano não funciona por compartimentos isolados. A relação entre DTM e DRGE pode não ser direta, mas é potencialmente mediada por fatores biopsicossociais, exigindo uma abordagem clínica ampla e interprofissional. Fica o convite: ao escutar o estalido da mandíbula, ouça também o que o estômago tem a dizer.

Referência

Prevalence of Temporomandibular Disorders in Patients With Gastroesophageal Reflux Disease: A Case-Controlled Study. J Oral Facial Pain Headache. 2023.

Prof Leonardo Nascimento, Ft Msc DO PhD
Fisioterapeuta
Pós-graduado em Fisioterapia Ortopédica e Desportiva pela UNICID/SP
Especialista em Terapia Manual e Postural pela Cesumar/PR
Especialista em Osteopatia pela Universidade Castelo Branco/RJ
Osteopata Certificado pela Escola de Madrid
Professor da Escola de Madrid Internacional
Mestre em Ciências – USP
Diplomado em Osteopatia pela SEFO (Scientific European Federation Osteopaths)
Doutor em Neurociências e Comportamento - FMUSP
É um estudioso da área de palpação e sensibilidade manual tátil no Laboratório de Fisioterapia e Comportamento na Universidade de São Paulo – USP
Colaborador do DO‑Touch - AOA (American Osteopathic Association)
Coordenador de Grupos de Pesquisas da Escola de Madrid Internacional
Host do Podcast Osteopatia Científica
Revisor de Periódicos de Fisioterapia e Osteopatia