Instabilidade de Tornozelo e Diafragma: Correlação ou Forçação de Barra?

 Um estudo recente publicado na Journal of Sport Rehabilitation investigou se indivíduos com instabilidade crônica de tornozelo (CAI — chronic ankle instability) apresentariam alteração na contratilidade do diafragma. A hipótese? Uma suposta conexão entre controle postural global e função respiratória. Mas será que os resultados sustentam essa ideia? Spoiler: com viés de confirmação e metodologia duvidosa, talvez estejamos diante de mais uma “cadeia mística” mal disfarçada de ciência.

O que o estudo investigou?

A pesquisa avaliou 20 indivíduos com CAI e 20 controles, todos fisicamente ativos. A contratilidade diafragmática foi medida via ultrassonografia, utilizando a espessura do músculo em repouso e durante a inspiração profunda para calcular o thickening ratio — um índice amplamente utilizado em reabilitação respiratória. O grupo CAI apresentou menor contratilidade do diafragma comparado ao grupo controle.

Conclusão dos autores? A disfunção do tornozelo poderia interferir na função do diafragma, justificando abordagens mais “globais” no tratamento da instabilidade crônica.

Análise Crítica: Metodologia, Coerência e Extrapolações

1. Amostra Pequena e Homogênea

Com apenas 20 indivíduos por grupo, o poder estatístico da análise é extremamente limitado. Não há qualquer avaliação sobre variáveis de confusão como índice de massa corporal, função respiratória basal, presença de asma, ansiedade ou mesmo histórico de trauma torácico. A análise se restringe à comparação entre dois grupos aparentemente saudáveis, com foco quase exclusivo no tornozelo.

👉 Crítica: Falar em “função do diafragma” sem avaliar capacidade pulmonar, padrão respiratório ou mesmo a presença de dor torácica é reducionismo disfarçado de análise biomecânica.

2. Ausência de Correlação Clínica Relevante

Não há dados correlacionando a disfunção do diafragma com pior desempenho funcional, aumento da dor ou instabilidade real no tornozelo. É uma correlação anatômico-fisiológica, e não clínica.

👉 Crítica: Ter uma contração diafragmática ligeiramente menor não significa que isso impacte a reabilitação do tornozelo, nem que o diafragma deva ser tratado nesse contexto. É uma inferência sem desfecho clínico.

3. Tese Implícita de Cadeias “Globais” Mal Fundamentada

Os autores citam que “a estabilidade postural depende da sinergia entre diafragma, transverso do abdome e multífidos”, apoiando-se em estudos de controle postural em lombalgia — não em tornozelo. Ou seja, transferem hipóteses biomecânicas de um sistema para outro sem base empírica específica.

👉 Crítica: Este tipo de extrapolação é comum em discursos pseudocientíficos que tentam justificar manipulações “à distância”. Aqui, o risco é usar o rótulo de ciência para reforçar práticas que carecem de evidência clínica real.

Reflexão Final: Diagnóstico Diferenciado Não É Diagnóstico Distante

O estudo levanta uma hipótese interessante: de que déficits respiratórios sutis possam coexistir com déficits posturais distais. No entanto, ele não fornece base suficiente para mudar condutas clínicas ou prescrever técnicas diafragmáticas em pacientes com entorses recorrentes.

Mais ciência, menos achismo biomecânico. Antes de expandir o tratamento do tornozelo até o diafragma, seria mais prudente fortalecer o pé — e a metodologia.

📚 Referência comentada:

Bavdek R, Šarabon N. Diaphragm Contractility in Individuals with Chronic Ankle Instability. J Sport Rehabil. 2023;32(4):474–479. doi:10.1123/jsr.2022-0033

Prof Leonardo Nascimento, Ft Msc DO PhD
Fisioterapeuta
Pós-graduado em Fisioterapia Ortopédica e Desportiva pela UNICID/SP
Especialista em Terapia Manual e Postural pela Cesumar/PR
Especialista em Osteopatia pela Universidade Castelo Branco/RJ
Osteopata Certificado pela Escola de Madrid
Professor da Escola de Madrid Internacional
Mestre em Ciências – USP
Doutor em Neurociências e Comportamento - FMUSP
Pesquisador em sensibilidade tátil, membro do DO-Touch (AOA)

Host do Podcast Osteopatia Científica

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