Síndrome Miofascial: O Diagnóstico que Preenche a Lacuna Entre a Dor do Paciente e o Que Ainda Não Compreendemos
Na prática clínica osteopática, poucos quadros são tão frequentes — e tão escorregadios — quanto a chamada síndrome dolorosa miofascial. Dor difusa, tensão aumentada, ponto-gatilho visível, banda tensa, limitação funcional localizada. O script parece familiar. Mas será que sabemos realmente o que estamos tratando? Ou será que estamos apenas dando um nome plausível para aquilo que, no fundo, ainda não conseguimos entender com clareza?
A tentação de rotular como SDM é grande. Afinal, o exame palpatório muitas vezes confirma: há hiperreatividade muscular, dor referida, espasmo local, e melhora aparente após técnicas de liberação. Mas precisamos de uma honestidade radical com nossa própria prática: quantas dessas SDMs resistem ao tratamento, recidivam ou retornam sob nova forma?
Mais ainda: quantas dessas “síndromes miofasciais” coexistem com outros diagnósticos reais — que, por vezes, sequer foram investigados com a devida atenção?
A dor miofascial raramente é solitária. Ela costuma ser expressão, não origem.
Na cervicalgia crônica, por exemplo, é comum identificar pontos-gatilho em trapézio e elevador da escápula. Mas essa dor convive com hipermobilidade craniocervical, sono fragmentado, ansiedade e medo de movimento.
Na dor glútea lateral, vemos o glúteo médio reativo, mas ignoramos a instabilidade pélvica e a alteração de marcha.
Na dor pélvica crônica, o assoalho pélvico está hiperativo, sim — mas será que não é uma consequência de trauma emocional não resolvido, constipação funcional e vigília autonômica?
Essas camadas não competem. Elas se sobrepõem. E é nesse emaranhado que o raciocínio osteopático precisa evoluir.
A SDM é frequentemente um diagnóstico de exclusão, feito quando já descartamos radiculopatias, artropatias, distúrbios viscerais, síndromes nociplásticas. O problema é que, muitas vezes, não descartamos nada — apenas não procuramos. A pressa em encontrar algo “tratável manualmente” nos leva a fixar no músculo o que o sistema está gritando. O ponto-gatilho vira distração clínica.
E se somarmos a isso a ideia sedutora de “inflamação de baixo grau” — com IL-6, TNF-α ou PCR-us levemente elevados — o cenário se complica. A inflamação subclínica virou explicação coringa para tudo: dor persistente, fadiga, insônia. Mas atletas inflamam. Quem não dorme bem inflama. Quem tem um dia ruim, também.
A inflamação de baixo grau não é causa primária, é resposta adaptativa.
E como tal, só ganha sentido dentro de um padrão clínico relacional.
O que isso nos diz como osteopatas? Que a dor miofascial não é um diagnóstico de chegada. É um convite à investigação.
Investigar biomecânica, sim. Mas também sistema autonômico, qualidade do sono, sofrimento psíquico, hábitos de vida, histórico de trauma.
O tratamento não pode ser apenas liberação, pressão isquêmica ou técnica energética. Isso pode até aliviar — mas não sustenta.
A clínica moderna exige raciocínio adaptativo, comunicação consciente e ações coerentes com o quadro real.
A pergunta que importa não é: “Onde está o ponto-gatilho?”
Mas sim: “Por que esse constante estado de alerta?”
A osteopatia tem ferramentas poderosas. Mas sem diagnóstico real, elas viram apenas um ritual técnico.
A síndrome miofascial talvez exista — mas não como a causa. Talvez ela seja apenas o nome que damos quando o corpo fala e ainda não aprendemos a escutar direito.
E talvez nossa missão como osteopatas seja deixar de nomear o que não compreendemos — e começar a compreender o que de fato está pedindo cuidado.
Leonardo Rios Diniz, PT, DO MRO(Br), MSc
Fisioterapeuta e OsteopataMestre em Ciências Médicas pela Universidade de Brasília (UnB)
Formação em Osteopatia pelo Instituto Brasileiro de Osteopatia W. G. Sutherland
Pós-graduação em Fisioterapia Traumato-Ortopédica pela Universidade de Brasília (UnB)
Membro do Registro Brasileiro dos Osteopatas
Aprimoramento em Doenças Reumáticas pela EULAR (European Alliance of Associations for Rheumatology)
Aprimoramento em Biomecânica Crâneo-Cervical e Fisiopatologia da ATM
Sócio-diretor da Corpo Clínica de Fisioterapia Ltda.
Professor em cursos de graduação, pós-graduação e formação em terapia manual
Pesquisador em terapia manual e aprimoramento do diagnóstico clínico e funcional
Tradutor técnico-científico em ciências da saúde
Host do Podcast Osteopatia Científica
Cofundador da Comunidade Osteopatia Científica
Membro do CABSIN (Consórcio Acadêmico Brasileiro de Saúde Integrativa)
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