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Entre sinais, sentidos e cerâmicas clínicas

 O que a semiologia tem a ver com barro, e por que isso importa para osteopatas. Se você acha que diagnóstico clínico é sobre encontrar por intuição o problema e usar aquela técnica milagrosa, acertar o teste que nenhuma outra profissão tem ou impressionar o paciente com toques suaves e revelações, talvez seja hora de uma conversa mais séria. Antes de querer decifrar o corpo como um mapa do tesouro místico, é bom entender o básico: semiologia e semiótica. Dois termos que, se você não domina, talvez esteja mais no time dos arqueólogos perdidos do que dos clínicos consistentes. A arte de observar e a ciência de interpretar A palavra semiologia vem do grego semeîon (sinal) e logos (estudo). Na saúde, ela é a arte de examinar sinais e sintomas. É a base. A linha de partida. Aquilo que deveria ser o arroz com feijão de quem se propõe a cuidar de alguém. A semiologia – ou propedêutica, como os clássicos gostam de chamar – se dedica justamente ao estudo dos sinais e sintomas. ...

Osteopatia: Entre a Tradição e a Ciência — Como Honrar Nossas Raízes sem Cair em Mitos

          A osteopatia nasceu de uma ousadia. No final do século XIX, Andrew Taylor Still olhou para o corpo humano e enxergou algo que a medicina da época ignorava: um sistema integrado, capaz de autorregulação, onde saúde e doença não eram meros acidentes, mas respostas complexas da natureza.           Essa visão global nos trouxe até aqui. Mas junto dela vieram explicações que, com o tempo, se cristalizaram em certezas. Hoje, precisamos de coragem para revisitar essas certezas, separando o que é raiz viva do que virou mito. Osteopatia Musculoesquelética           No princípio, falávamos de lesão primária e disfunção somática , acreditando que um bloqueio sutil poderia desorganizar todo o corpo. A Lei da Artéria reforçava a ideia de que a circulação era chave para a saúde. Mais tarde, o possibilismo anatômico e o modelo de tensegridade ajudaram a explicar como uma restrição local poderi...

O Diafragma Respiratório na Visão Osteopática: Mito, Método e Evidência

 A literatura osteopática frequentemente eleva o diafragma a um papel central na saúde global do corpo, atribuindo a ele funções que vão além da respiração — como o bombeamento linfático, regulação visceral e impacto direto sobre dores na coluna. Mas até que ponto essa visão tem respaldo científico consistente? 1. Fundamentos Teóricos — Uma Visão Holística ou Extrapolada? Sagrillo & Frigo (2016) revisaram estudos que relacionam o diafragma a dores na lombar, cervical, refluxo gastroesofágico e ao sistema linfático. Ainda que defendam um conceito de “cadeias disfuncionais”, a revisão encontrou apenas  10 artigos compatíveis , muitos com viés e baixa robustez metodológica. Os argumentos anatômicos destacam: Relações fasciais  entre o diafragma e musculatura lombar ou pélvica (como psoas, quadrado lombar). Inervação frênica (C3‑C5)  implicando a conexão direta com segmentos cervicais, potencialmente explicando dores referidas. 2. Evidências Empíricas — O Que Dizem o...

Dor no Ombro por 22 Anos: Quando a Hérnia Diafragmática É a Verdadeira Causa

  Um Caso Inusitado de Diagnóstico Tardio Este relato descreve o caso de uma mulher de 52 anos que desenvolveu  dor crônica no ombro esquerdo  imediatamente após um acidente automotivo, sem nenhuma melhora por  22 anos , apesar de diversas avaliações ortopédicas e tratamentos convencionais (p.ex., fisioterapia, injeções e cirurgia local). Somente duas décadas após o trauma, sintomas abdominais intermitentes (dor e náuseas) motivaram uma tomografia computadorizada — que revelou uma  hérnia diafragmática pós-traumática esquerda . A lesão, provavelmente originada de fraturas de costelas não diagnosticadas, foi então reparada via laparoscopia. Após isso,  a dor no ombro desapareceu imediatamente. Lições Diagnósticas Dor referida não vem sempre da estrutura local O sintoma principal era ombro, mas a origem estava no diafragma irritado. Esse tipo de dor  somática referida por via frênica  é raramente considerada na prática clínica musculoesquelética. Tr...

Conexão Corporal, Ansiedade e a Promessa da Osteopatia: Quando o Toque Cura — ou só Acalma?

  O artigo "Effects of a myofascial and lymphatic osteopathic manipulative treatment protocol on mood and body connection" (Levy & Jung, 2025) é, à primeira vista, um daqueles trabalhos que aquecem o coração de quem acredita que o toque pode transformar. Que a fascia sente. Que a mente e o corpo dançam em sincronia e que a osteopatia pode mudar o ritmo desse baile. Existe algo de muito bonito nesse estudo. Uma proposta integrativa. Uma tentativa de romper a barreira entre o físico e o psíquico. Um protocolo padronizado que tenta fugir do “tratamento black box” tão comum nas pesquisas em OMT. A estrutura do estudo é elegante: protocolo bem descrito, instrumentos validados (DASS, STAI, SBC), análise estatística com GEE e Cohen’s d, efeitos clinicamente significativos em ansiedade, depressão e dissociação corporal. Um desenho limpo, sem interferências terapêuticas externas. E, ainda por cima, publicado em uma revista de acesso aberto, com linguagem clara e acessível. ...

Síndrome da Dor do Trocanter Maior e Sistema de Movimento: Um Novo Olhar para a Dor no Quadril

             A dor na região lateral do quadril, frequentemente diagnosticada como Síndrome Dolorosa do Grande Trocanter (GTPS), é um desafio comum na prática clínica. Por muito tempo, atribuímos essa dor à bursite trocantérica isoladamente, mas os estudos atuais mostram que a realidade é bem mais complexa. A classificação baseada no sistema de movimento, como propõe o estudo de Disantis e Martin (2022), oferece uma abordagem mais individualizada e eficaz. O Desafio Diagnóstico GTPS não é uma entidade única. Pode envolver tendinopatias dos glúteos médio e mínimo, inflamações da bursa trocantérica, ou ainda o atrito da banda iliotibial. O problema é que os testes clínicos convencionais têm baixa acurácia, e exames de imagem nem sempre ajudam. Segundo os autores, o foco deve ser na análise do movimento e da função – não apenas na dor localizada. Classificação Funcional: A Chave do Tratamento A proposta do artigo é simples e poderosa: classificar os pacie...

Síndrome Miofascial: O Diagnóstico que Preenche a Lacuna Entre a Dor do Paciente e o Que Ainda Não Compreendemos

          Na prática clínica osteopática, poucos quadros são tão frequentes — e tão escorregadios — quanto a chamada síndrome dolorosa miofascial . Dor difusa, tensão aumentada, ponto-gatilho visível, banda tensa, limitação funcional localizada. O script parece familiar. Mas será que sabemos realmente o que estamos tratando? Ou será que estamos apenas dando um nome plausível para aquilo que, no fundo, ainda não conseguimos entender com clareza?           A tentação de rotular como SDM é grande. Afinal, o exame palpatório muitas vezes confirma: há hiperreatividade muscular, dor referida, espasmo local, e melhora aparente após técnicas de liberação. Mas precisamos de uma honestidade radical com nossa própria prática: quantas dessas SDMs resistem ao tratamento, recidivam ou retornam sob nova forma?           Mais ainda: quantas dessas “síndromes miofasciais” coexistem com outros diagnósticos reais — q...

Mielopatia Cervical: Diagnóstico, Diferenciais e Diretrizes Baseadas em Evidência

 A mielopatia cervical é uma condição neurológica progressiva resultante da compressão da medula espinhal na região cervical, sendo uma das principais causas de disfunção neurológica em adultos acima dos 50 anos. O reconhecimento precoce e o manejo adequado são essenciais para evitar déficits permanentes. Quadro Clínico: Quando Suspeitar? Os sinais e sintomas mais comuns incluem: Fraqueza e perda de destreza em mãos e membros superiores; Alterações na marcha (marcha espástica ou instável); Hiperreflexia e presença de sinais patológicos (Babinski, Hoffman); Urgência urinária ou disfunções esfincterianas; Dormência ou sensação de queimação nos braços, mãos e pernas. Sintomas iniciais podem ser sutis e confundidos com condições menos graves, como radiculopatia cervical ou síndrome do túnel do carpo. Critérios Clínicos de Alerta Estudos como o de Nouri et al. (2015) propõem a avaliação de três domínios principais: Função da mão  (escrita, abotoar camisa); Alterações de marcha ...

Terapia Craniossacral: Entre a Intuição e a Ausência de Evidência

 A terapia craniossacral (TCS) é frequentemente apresentada como uma técnica manual sutil e poderosa, capaz de tratar uma infinidade de disfunções — de cefaleias a transtornos do espectro autista — por meio de toques quase imperceptíveis no crânio e sacro. No entanto, quando submetida ao crivo da ciência e da metodologia rigorosa, essa abordagem mostra-se frágil, baseada em premissas fisiológicas inconsistentes, baixa plausibilidade biológica e pobre sustentação empírica. As bases teóricas: onde está a coerência fisiológica? A TCS parte da premissa de que existe um "ritmo craniossacral" independente, gerado pela flutuação do líquido cerebroespinhal, que pode ser percebido pelas mãos do terapeuta treinado. Aqui começa o problema: Não há evidência fisiológica robusta que comprove a existência desse ritmo como um fenômeno autônomo e palpável.  Estudos de histologia, fisiologia e neuroanatomia não sustentam essa hipótese. A mobilidade dos ossos cranianos em adultos, proposta como...