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Mostrando postagens de agosto, 2025

A virada silenciosa da terapia manual: menos geografia, mais fisiologia (e contexto).

          A percepção clínica sobre terapia manual está migrando do discurso de “recolocar estruturas” para a narrativa de modular sistemas — com cérebro, expectativa e aliança terapêutica dividindo o protagonismo com a biomecânica. E isso é bom. Só não vale transformar plausibilidade em dogma.           Se você atende dor cervical, a cena é familiar: mobilização passiva, reavaliação imediata, aquela sensação de “abriu”. Quando fisioterapeutas foram convidados a quantificar esse efeito, a média ficou por volta de 66% em uma escala de 0 a 100. É uma percepção moderado-alta , com variação grande — o que lembra que nem todas as respostas são iguais, nem todo contexto é o mesmo. O que mudou?           Quando perguntamos “o que explica esse efeito agora?”, o velho mapa “estrutura-centrado” dá lugar a um território neuro-contextual .           Os profissionais apontam o ...

Testes Provocativos para Ombro: Prática Frequente, Precisão Questionável

 Os testes provocativos fazem parte da rotina clínica diária na avaliação de dores no ombro. O paciente relata dor, o terapeuta realiza um conjunto de manobras específicas e, com base em respostas positivas, constrói-se uma hipótese diagnóstica. No entanto, a consistência científica por trás desses testes tem sido amplamente debatida. O estudo revisado por Christiansen et al. (2021) analisa criticamente a validade diagnóstica dos testes mais utilizados para condições comuns do ombro, como lesões do manguito rotador, impacto subacromial e instabilidade glenoumeral. A análise considerou 26 testes clínicos frequentemente usados, como Neer, Hawkins-Kennedy, Jobe, Lift-Off, Apprehension Test e Speed Test, confrontando-os com achados de imagem ou artroscopia, considerados padrão-ouro. Os resultados são preocupantes. Poucos testes mostraram valores confiáveis de sensibilidade e especificidade. O Jobe Test, por exemplo, apresentou sensibilidade entre 41 e 89% e especificidade entre 50 e 95...

Degeneração Vertebral Sem Sintomas: O Peso da Imagem Nem Sempre é Clínico

 A revisão sistemática conduzida por Brinjikji et al. (2015) lançou luz sobre uma das questões mais controversas da prática clínica musculoesquelética: o significado das alterações degenerativas na coluna vertebral observadas por imagem em indivíduos assintomáticos. A pesquisa compilou dados de 33 estudos com mais de 3.100 pacientes, evidenciando que diversas anormalidades radiológicas consideradas patológicas são, na verdade, extremamente comuns em pessoas sem dor. Os números são contundentes. Cerca de 37% dos jovens de 20 anos já apresentam degeneração discal em exames de imagem, percentual que sobe para 96% aos 80 anos. Protusões discais foram encontradas em até 30% dos indivíduos aos 20 anos e em mais de 80% aos 80. Outras alterações, como desidratação do disco, protrusão, fissuras anulares, osteófitos e espondilólise, mostraram padrões similares de aumento com a idade — mas sem qualquer correlação clínica com dor lombar ou cervical nesses sujeitos. Esses achados impõem uma ref...

Síndrome da Cauda Equina: Um Guia Prático ou Mais do Mesmo?

 A  Cauda Equina Syndrome (CES)  continua sendo uma das condições neurológicas mais temidas — e mal compreendidas — dentro da prática musculoesquelética. O artigo publicado na  The Lancet Rheumatology  por Woodfield et al. (2023) tenta organizar esse caos diagnóstico com uma proposta de definição prática e classificações clínicas progressivas. Mas a pergunta que fica é:  será que finalmente temos um modelo confiável ou só mais uma tentativa de padronizar o impalpável? 🔍 O Problema: Diagnóstico Ambíguo e Alto Risco Médico-Legal Apesar de ser uma emergência neurológica clássica, a CES é frequentemente mal diagnosticada. O tempo para descompressão cirúrgica influencia diretamente os resultados, mas o diagnóstico precoce é desafiador — tanto pelos sintomas iniciais vagos quanto pela falta de consenso sobre o que realmente configura uma CES "real". 📘 O Proposto: Uma Classificação Funcional por Estágios O artigo propõe 4 categorias principais da CES, com base n...

Instabilidade de Tornozelo e Diafragma: Correlação ou Forçação de Barra?

 Um estudo recente publicado na  Journal of Sport Rehabilitation  investigou se indivíduos com instabilidade crônica de tornozelo (CAI — chronic ankle instability) apresentariam alteração na contratilidade do diafragma. A hipótese? Uma suposta conexão entre controle postural global e função respiratória. Mas será que os resultados sustentam essa ideia? Spoiler: com viés de confirmação e metodologia duvidosa, talvez estejamos diante de mais uma “cadeia mística” mal disfarçada de ciência. O que o estudo investigou? A pesquisa avaliou 20 indivíduos com CAI e 20 controles, todos fisicamente ativos. A contratilidade diafragmática foi medida via ultrassonografia, utilizando a espessura do músculo em repouso e durante a inspiração profunda para calcular o  thickening ratio  — um índice amplamente utilizado em reabilitação respiratória. O grupo CAI apresentou menor contratilidade do diafragma comparado ao grupo controle. Conclusão dos autores?  A disfunção do torno...

Reabilitação da Dor Lombar: Está na Hora de Integrar Tudo!

 A dor lombar é uma das principais causas de incapacidade no mundo — e paradoxalmente, um dos quadros com maior excesso de exames, intervenções passivas e tratamentos fragmentados. Em vez de integrar conhecimento, seguimos reforçando modelos ultrapassados. Mas o artigo de Caneiro et al. (2020) nos faz um convite direto:  é hora de juntar as peças e evoluir . O Problema: Fragmentação do Cuidado Apesar do aumento das evidências científicas, muitos pacientes com dor lombar ainda recebem tratamentos desatualizados ou inconsistentes. Exames de imagem são solicitados precocemente, a dor é encarada como exclusivamente biomecânica, e as soluções oferecidas muitas vezes giram em torno de repouso, manipulações e promessas de “consertar” estruturas. 👉 Resultado? Cronificação dos sintomas, medo de movimento, dependência terapêutica e frustração — tanto do paciente quanto do profissional. A Solução: Um Modelo Integrado de Reabilitação Caneiro et al. propõem um modelo de reabilitação que c...

Entre sinais, sentidos e cerâmicas clínicas

 O que a semiologia tem a ver com barro, e por que isso importa para osteopatas. Se você acha que diagnóstico clínico é sobre encontrar por intuição o problema e usar aquela técnica milagrosa, acertar o teste que nenhuma outra profissão tem ou impressionar o paciente com toques suaves e revelações, talvez seja hora de uma conversa mais séria. Antes de querer decifrar o corpo como um mapa do tesouro místico, é bom entender o básico: semiologia e semiótica. Dois termos que, se você não domina, talvez esteja mais no time dos arqueólogos perdidos do que dos clínicos consistentes. A arte de observar e a ciência de interpretar A palavra semiologia vem do grego semeîon (sinal) e logos (estudo). Na saúde, ela é a arte de examinar sinais e sintomas. É a base. A linha de partida. Aquilo que deveria ser o arroz com feijão de quem se propõe a cuidar de alguém. A semiologia – ou propedêutica, como os clássicos gostam de chamar – se dedica justamente ao estudo dos sinais e sintomas. ...

Osteopatia: Entre a Tradição e a Ciência — Como Honrar Nossas Raízes sem Cair em Mitos

          A osteopatia nasceu de uma ousadia. No final do século XIX, Andrew Taylor Still olhou para o corpo humano e enxergou algo que a medicina da época ignorava: um sistema integrado, capaz de autorregulação, onde saúde e doença não eram meros acidentes, mas respostas complexas da natureza.           Essa visão global nos trouxe até aqui. Mas junto dela vieram explicações que, com o tempo, se cristalizaram em certezas. Hoje, precisamos de coragem para revisitar essas certezas, separando o que é raiz viva do que virou mito. Osteopatia Musculoesquelética           No princípio, falávamos de lesão primária e disfunção somática , acreditando que um bloqueio sutil poderia desorganizar todo o corpo. A Lei da Artéria reforçava a ideia de que a circulação era chave para a saúde. Mais tarde, o possibilismo anatômico e o modelo de tensegridade ajudaram a explicar como uma restrição local poderi...