Cicatriz de Cesárea Causa Dor no Quadril?

Uma hipótese com apelo clínico, mas ainda sem comprovação científica robusta

Introdução

Na prática clínica, é cada vez mais comum encontrar terapeutas manuais e profissionais da área da saúde que relatam melhora de dores no quadril, pelve ou lombar após intervenções em cicatrizes abdominais — especialmente cicatrizes de cesárea. Essa observação gera uma pergunta importante: há base anatômica, fisiológica ou clínica suficiente para afirmar que uma cicatriz de cesárea pode gerar dor no quadril por meio de aderência fascial?

Neste artigo, revisamos as evidências a favor e contra essa hipótese, com o objetivo de esclarecer o que já é plausível, o que ainda é especulativo e o que precisa ser melhor investigado.

 Argumentos a Favor

1. Continuidade anatômica da fáscia

A anatomia fascial demonstra conexões claras entre as fáscias abdominais (Scarpa, transversalis), o ligamento inguinal, a fáscia lata da coxa e as estruturas suspensórias da pelve. Isso foi descrito por autores como Myers (1), Carla Stecco e Willard (2–5). Essa continuidade estrutural fornece uma plausibilidade biomecânica básica para que tensões fasciais abdominais possam, teoricamente, repercutir em estruturas do quadril.

2. A fáscia como órgão sensorial ativo

Estudos histológicos mostram que a fáscia contém nociceptores, mecanorreceptores e terminações autonômicas (2–4, 11–12). Uma cicatriz aderente pode:

• Reduzir a mobilidade fascial;

• Aumentar o colágeno tipo III;

• Estimular terminações nervosas com baixa tolerância à deformação.

Isso sugere que cicatrizes podem se tornar focos de irritabilidade local — e, possivelmente, contribuir para quadros de dor referida.

3. Dor crônica pós-cesárea é real — e ainda pouco compreendida

Estudos como os de Nair et al. (8) e Nikolajsen et al. (9) mostram que entre 7% e 20% das mulheres desenvolvem dor crônica após cesárea, mesmo sem lesão nervosa ou hérnia detectável. A cicatriz raramente é investigada como causa ativa, o que representa uma lacuna importante nos modelos biomédicos atuais.

4. Modelos animais demonstram repercussões funcionais a distância

Estudos com ratos (10) mostraram que aderências abdominais induzidas cirurgicamente:

• Aumentam a rigidez tecidual;

• Alteram a mobilidade global do tronco;

• Geram dor à palpação à distância do foco cicatricial.

Esses dados não podem ser extrapolados diretamente para humanos, mas oferecem sinal biomecânico preliminar compatível com o fenômeno clínico observado.

5. Estudos clínicos preliminares sugerem benefício da liberação cicatricial

Séries de caso (7) relatam:

• Redução de dor pélvica ou lombar após liberação manual da cicatriz;

• Aumento de mobilidade tecidual (avaliado por elastografia ou inspeção funcional);

• Correlação entre rigidez da cicatriz e intensidade da dor.

Esses achados ainda carecem de controle placebo, randomização e avaliação longitudinal, mas apontam para um fenômeno clínico recorrente que merece investigação mais robusta.

6. Padrões semelhantes em outras regiões do corpo

Casos como o de Mizuno et al. (6), que relatam resolução de dor ciática após tratamento de cicatriz no tornozelo, reforçam a ideia de que padrões de dor por disfunção fascial remota existem — mesmo que ainda pouco compreendidos.

Argumentos Contra

1. Continuidade anatômica não implica relevância clínica

Dissecções cadavéricas e modelos biomecânicos (1, 14) mostram que a força transmitida por tração fascial é clinicamente insignificante a distâncias maiores, e que a deformação é altamente localizada.

2. Dor fascial referida não é bem caracterizada na literatura científica

A presença de nociceptores na fáscia (2, 4, 11) não garante que ela gere dor à distância. Dores referidas conhecidas (ex: angina) envolvem mecanismos neurofisiológicos centrais, não tração mecânica periférica.

3. Faltam ensaios clínicos controlados e com grupo placebo

Relatos como o de Wasserman et al. (7) são importantes como observação clínica, mas não têm grupo controle, cegamento ou follow-up. A ausência de estudos comparando liberação real versus simulada impede qualquer conclusão robusta.

4. Hipóteses viscerossomáticas muitas vezes são aplicadas de forma retroativa

Não há evidência de que uma cicatriz cutânea altere a função visceral a ponto de gerar dor referida segmentar. A extrapolação a partir de dermatômeros pode se tornar especulativa.

5. A fáscia compensa — até que não consiga mais

Segundo o conceito de alostase tecidual (13), a fáscia distribui e dissipa tensões, mantendo a estabilidade do sistema. Para que a cicatriz de cesárea gere dor no quadril, seria necessário um colapso compensatório funcional e sensorial em múltiplos níveis.

Conclusão Crítica

Sim, tudo está conectado — mas nem tudo é clinicamente relevante a todo momento.

A hipótese de que cicatrizes de cesárea possam causar dor no quadril por meio de aderências fasciais tem:

Boa plausibilidade anatômica e sensorial;

Dados observacionais e relatos clínicos compatíveis;

Mas ainda carece de estudos controlados, testes de dose-resposta e validação biomecânica funcional in vivo.


A transmissão de tensão por continuidade fascial só é clinicamente relevante quando:

  • o estresse local excede a capacidade de adaptação do sistema,

  • não há compensação eficiente por estratégias de controle motor distribuído,

  • e o corpo entra em falência alostática localizada ou global.

Fora isso, a fáscia faz o que é feita para fazer: compensar, distribuir carga, modular, e seguir silenciosa.

Em termos científicos, isso justifica a formulação de hipóteses testáveis, mas não sua aceitação clínica como verdade consolidada.


Referências

1. Myers TW. Anatomy Trains: Myofascial Meridians for Manual and Movement Therapists. 3rd ed. London: Churchill Livingstone; 2014.

2. Stecco C, Macchi V, Porzionato A, Duparc F, De Caro R. The fascia: the forgotten structure. Ital J Anat Embryol. 2011;116(3):127–38.

3. Schleip R, Jäger H, Klingler W. What is ‘fascia’? A review of different nomenclatures. J Bodyw Mov Ther. 2012;16(4):496–502.

4. Willard FH, Vleeming A, Schuenke MD, Danneels L, Schleip R. The thoracolumbar fascia: anatomy, function and clinical considerations. J Anat. 2012;221(6):507–36.

5. Stecco C, Gagey O, Belloni A, Pozzuoli A, Porzionato A, Macchi V, De Caro R. Anatomy of the deep fascia of the upper limb. Second part: study of innervation. Morphologie. 2007;91(292):38–43.

6. Mizuno Y, Yokota T, Harada Y, Ogawa K, Tanaka T. A case of chronic sciatic pain successfully treated by scar therapy for an old ankle injury: fascial continuity as a plausible explanatory model. J Bodyw Mov Ther. 2023;37:142–9.

7. Wasserman G, Guimarães LR, Oliveira BCR, Assis CP, da Silva HR. Chronic Caesarian section scar pain treated with fascial scar release techniques: a case series. J Bodyw Mov Ther. 2016;20(2):336–44.

8. Nair A, Diwan AD, Hsieh JCH. Chronic pain following caesarean section: A review of the literature. Aust N Z J Obstet Gynaecol. 2021;61(2):176–84.

9. Nikolajsen L, Sørensen HC, Jensen TS, Kehlet H. Chronic pain following cesarean section. Acta Anaesthesiol Scand. 2004;48(1):111–6.

10. Verhulst M, Van der Linden J, De Backer G, Casteleyn C. Evaluation of post-surgical intra-abdominal adhesions in a rat model: effects of treatment with a hyaluronan-based gel. Arch Gynecol Obstet. 2018;297(1):215–21.

11. Stecco L, Stecco C, Macchi V, Porzionato A, Ann Day J, De Caro R. Histological study of the deep fasciae of the limbs. J Bodyw Mov Ther. 2009;13(3):255–61.

12. Langevin HM, Sherman KJ. Pathophysiological model for chronic low back pain integrating connective tissue and nervous system mechanisms. Med Hypotheses. 2007;68(1):74–80.

13. Findley TW, Schleip R. Fascia research II: basic science and implications for conventional and complementary health care. Munich: Elsevier Urban & Fischer; 2009.

14. Chaudhry H, Schleip R, Ji Z, Bukiet B, Maney M, Findley TW. Three-dimensional mathematical model for deformation of human fasciae in manual therapy. J Am Osteopath Assoc. 2008;108(8):379–90.


Leonardo Rios Diniz, PT, DO MRO(Br), MSc
Fisioterapeuta e Osteopata
Mestre em Ciências Médicas pela Universidade de Brasília (UnB)
Formação em Osteopatia pelo Instituto Brasileiro de Osteopatia W. G. Sutherland
Pós-graduação em Fisioterapia Traumato-Ortopédica pela Universidade de Brasília (UnB)
Membro do Registro Brasileiro dos Osteopatas
Aprimoramento em Doenças Reumáticas pela EULAR (European Alliance of Associations for Rheumatology)
Aprimoramento em Biomecânica Crâneo-Cervical e Fisiopatologia da ATM
Sócio-diretor da Corpo Clínica de Fisioterapia Ltda.
Professor em cursos de graduação, pós-graduação e formação em terapia manual
Pesquisador em terapia manual e aprimoramento do diagnóstico clínico e funcional
Tradutor técnico-científico em ciências da saúde
Host do Podcast Osteopatia Científica
Cofundador da Comunidade Osteopatia Científica

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Controle Motor: A Base Científica que Está Revolucionando a Reabilitação!

Nervo vertebral

O teste de discriminação de dois pontos melhora com o tempo de prática?