A disfunção somática de Still até hoje

Andrew Taylor Still desenvolveu o raciocínio original de lesão osteopática ou disfunção somática (termo utilizado mais tarde) com base na obstrução de circulação de fluídos corporais e especialmente se referindo as estruturas ósseas e mais precisamente na coluna vertebral.

Esse conceito tem sido ao longo dos anos um problema no ensino da osteopatia e o artigo dessa semana fará uma revisão narrativa histórica sobre a evolução desse conceito ao longo do tempo e sua relação com grande modelos baseados em evidências que explicam esses achados clínicos.

O conceito original de Still para a lesão osteopática mostra o fascínio que o Old Doc tinha pela fisiologia do corpo humano e como o ambiente da época interferiu nos seus estudos. A tecnologia era um dos campos de estudos que fascinava o Dr Still e com isso percebe se conceitos de mecânica Newtoniana clássica, estávamos na época da Revolução Industrial do séc XIX, e essas leis descreviam um movimento perfeitamente construído sob um sistema de forças e com uma analogia Still descreve o corpo humano como uma máquina delicada e perfeita e o osteopata era o mecânico que examinava essa relação homem máquina.

E uma outra grande influência em seus conceitos foram os estudos de anatomia que se aprofundavam na época, com dissecações de cadáveres e estudos do corpo humano. As idéias de irritação e obstrução da circulação de fluídos no corpo humano afloravam na época.

Uma outra influência foi o conceito de obstrução de Emanuel Swedenborg que acreditava que a alma estava dissolvida nos líquidos do corpo e distribuída por todo o corpo e qualquer obstrução dos líquidos corporais pelos processos de enfermidades deve ser removida para restaurar a saúde. Aqui já percebemos conceitos de espiritualidade na filosofia. 

Todos esses conceitos foram desenvolvidos em estruturas da coluna vertebral e posteriormente adaptados às outras articulações do corpo.

Muitos pesquisadores osteopatas estudaram e aplicaram esses conceitos para comprovar as teorias de Still.

Guy Dudley Hullet foi o primeiro a documentar o conceito de lesão osteopática como 'qualquer perversão estrutural que por pressão produz ou mantém desordem funcional'. Percebe se que não se refere apenas à lesão óssea mas, inclui todos os tecidos corporais e um outro ponto importante é que Hullet utilizou pela primeira vez o termo lesão espinal - não se referindo à alterações estruturais mas sim, disfunções de mobilidade da coluna.

Em 1935, George Malcom McCole criticou a definição de Hullet para a inclusão de doenças ósseas, tumores e lesões graves que não seriam passíveis de manipulação osteopática. A lesão osteopática foi definida então como qualquer restrição de movimento da articulação espinal que poderia ser resolvida com uma intervenção osteopática. McCole afirmou ainda que a lesão osteopática era resultado do ritmo articular ou da ação do tecido desses (Incluindo segmentos da medula espinal e gânglios simpáticos), que por sua vez podem causar distúrbios dos tecidos locais ou periféricos. Estas alterações podem ocorrer tanto no estado anatômico normal como em articulações anormais e podem ser corrigidas por manipulação osteopática.

Na época, a lesão osteopática geralmente se referia a distúrbios das estruturas espinais. Assim, os termos lesão osteopática e lesão espinal foram freqüentemente usados ​​de forma intercambiável. Diz-se que uma lesão espinhal se caracterizava pela articulação não fisiológica de superfícies articulares afetadas na fase de repouso ou por uma tensão intra-articular perturbada causada por contraturas paravertebrais ou contrações de tecido (por exemplo, músculo, ligamentos, capilares, nervos, nervos Centros) . Também se pensava que as lesões espinais ocorriam como uma tensão retiniana do músculo espinhal causada por irritação e doença visceral.

Uma deformidade anatômica ou posicionamento da coluna vertebral e das costelas afetariam diretamente os "canais vitais" (ou seja, o fluxo livre de todos os líquidos nas artérias, veias, vasos linfáticos e o líquido cefalorraquidiano) e a condução livre dos nervos, de acordo com Carl Philip McConell, DO, que considerava a abordagem original inteira de Still em sua teoria.

Yale Castlio, DO, diferenciou uma lesão osteopática como uma posição defeituosa e uma restrição de movimento das estruturas articulares ósseas de uma lesão espinhal como uma lesão de uma de várias facetas articulares entre duas vértebras. De acordo com Castlio, uma lesão osteopática também afeta tecidos e órgãos distantes da lesão. 

Em 1930, Castlio expandiu a definição de Hulett de lesão espinal e outras definições aplicando um foco exclusivo em desordens articulares. Considerou mudanças palpáveis ​​de tecido mole associado (isto é, contrações musculares, ligamentos espessados, edema, Acidose, neurite, alterações vasomotoras, tróficas e metabólicas e restrições de movimento) envolvendo a medula espinhal e os gânglios simpáticos.


Em 1923, o conceito de lesão osteopática foi ampliado por Carter Harrison Downing (o mesmo do teste de Downing), que usou o termo complexo de lesão osteopática maior para descrever conseqüências adaptativas no sistema nervoso, no sistema circulatório, no sistema secretor e no sistema excretor. O complexo de lesão osteopática maior incluiu comprometimentos da mobilidade da articulação espinal normal dentro de limites anatômicos de movimento acessíveis à manipulação osteopática e portanto, excluídas doenças ou distúrbios da coluna vertebral, como fraturas ou anquilose. É um efeito secundário das regiões da medula espinal e pode causar distúrbios próximos e distantes dos tecidos.

John Martin Littlejohn  explorou um conceito de lesão que diferia das definições anteriores e declarou que o corpo não é um mecanismo, mas um organismo. Ele prosseguiu dizendo que as leituras puramente mecânicas não podem ocorrer, como são, por exemplo, associadas aos estados mentais e psicológicos, saúde, função e estrutura. Nesse sentido, ele usou o termo lesão ambiental.

Harrison Fryette (outro nome conhecido né?) expandiu os pensamentos de Arthur D. Becker que considerou a lesão estrutural total como a lesão mecânica primária além de todas as compensações mecânicas conseqüentes. Fryette escolheu o termo lesão total e já não se referia apenas a fatores mecânicos, mas a fatores que predispõem os pacientes a doenças. Esses fatores incluem, por exemplo, fatores ambientais, agentes infecciosos, fatores nutricionais e fatores emocionais que podem afetar potencialmente a saúde.

Em 1935, George MacDonald e W. Hargrave-Wilson classificaram as lesões de acordo com os aspectos causais como lesões primárias e secundárias. A lesão primária é uma lesão de uma articulação causada por uma lesão aguda torção, compressão, carga (deformação), um trauma agudo, na sua maioria muito pequeno ou estresse resultante de torção, compressão ou carga crônica. Estes últimos geralmente ocorrem em pontos fracos da coluna, que também dependem da postura, como os segmentos espinhais L5-S1, T11-12, C1 -2 e C2-3. Cada lesão primária ativa foi pensada para ser reforçada por fatores secundários adicionais ou uma lesão primária não ativa poderia ser reativada por esses fatores. A lesão secundária também foi chamada de lesão recorrente; A causa primária não estava na articulação respectiva, mas em um órgão ou outro tecido distante da coluna vertebral, ou resultou de condições térmicas, ou transtornos mentais, como a ansiedade. As lesões secundárias foram causadas por meio de um arco reflexo ou por uma irritação do segmento da medula espinal (viscerosomatic reflex) causada por falha de um órgão. Esse reflexo ou irritação pode levar a tensões ligamentares e musculares na área espinal correspondente, o que pode se tornar uma lesão ativa que pode, por sua vez, afetar ainda mais o órgão (isto é, a reação somatovisceral).

E as relações com os modelos baseados em evidências?

Em meados da década de 1960, o Comitê de Assistência Hospitalar da Academia de Osteopatia Aplicada, presidido por Ira Rumney, desenvolveu definições para diagnóstico e tratamento osteopático para inclusão na Classificação Internacional de Doenças. A lesão osteopática foi substituído pelo termo disfunção somática para fornecer às companhias de seguros e ao público critérios específicos para a prestação de serviços de osteopatia. Hoje, o termo disfunção somática é amplamente estabelecido e comumente usado na educação e prática osteopática. O Conselho Educativo sobre Princípios Osteopáticos define a disfunção somática da seguinte forma: Função comprometida ou alterada de componentes do sistema somático (estrutura corporal): estruturas esqueléticas, artrodiais e miofasciais, e seus elementos vasculares, linfáticos e neurais relacionados. A disfunção somática é tratável usando o tratamento manipulativo osteopático.

Os indicadores diagnósticos típicos para a disfunção somática são: anormalidade da textura do tecido, assimetria, restrição do movimento e sensibilidade dos tecidos afetados (TART). A disfunção somática é comumente classificada como aguda ou crônica. 

A evidência precoce para uma explicação neurológica da disfunção somática foi fornecida no final da década de 1940, quando J. Stedman Denslow e Irvin Korr (que já foi capa de nosso blog) introduziram a teoria da facilitação medular para explicar os achados comuns de alterações nos tecidos moles, dor e tensão e hipertonicidade muscular. Denslow e Korr investigaram os aspectos neurofisiológicos da disfunção somática, especialmente do sistema nervoso simpático, com suas pesquisas posteriormente incorporadas no conceito de facilitação medular.

Wilbur Cole acrescentou a esta teoria em 1952, avaliando os efeitos da disfunção somática induzida em animais e identificando alterações histológicas. Ele hipotetizou que a estimulação de receptores nos músculos estriados pode levar à ativação do sistema nervoso autônomo na medula espinal o que, por sua vez, produz uma contração muscular predominantemente parasimpática mediada e alterações histológicas nas vísceras distantes da lesão segmentar espinal pela transmissão de impulsos aferentes ao hipotálamo via vago.

Em 1976, Michael M. Patterson (que já esteve no Brasil por duas vezes no CIOST) sugeriu um possível mecanismo para a gênese e manutenção da facilitação espinal, atribuindo um papel ativo e vital às vias neurais da coluna vertebral na geração de disfunção somática. Ele propôs que uma contribuição aferente de um esqueleto ou órgão visceral poderia iniciar a sensibilização das vias neurais, resultando em aumento da produção e restabelecimento da excitabilidade das áreas afetadas da medula espinal. Assim, o controle de centros superiores nas áreas sensibilizadas diminuiria e levaria a segmentos comprometidos. Esse processo levaria a mudanças na atividade esquelética e autonômica, bem como na função visceral.

Richard L. Van Buskirk, introduziu seu próprio modelo de disfunção somática em 1990 com base no papel central dos nociceptores no desenvolvimento da disfunção somática segmentar. Van Buskirk propôs que os neurônios sensoriais relacionados à dor e seus reflexos causam restrições de motilidade e alterações viscerais, imunológicas e autonômicas.

Gary Fryer, revisou e atualizou essa disfunção somática baseada na teoria do conceito de nociceptores ao longo do tempo, levando em conta a literatura mais recente sobre o tema. Seu modelo mais recente propõe que a lesão tecidual leva a ativação de nociceptores, resultando em tecido neurogênico ativado na raiz dorsal. Este impulso nociceptivo pode inibir a atividade dos músculos segmentares profundos, ao mesmo tempo que aumenta a ativação da musculatura superficial, resultando em atividade de proteção de uma musculatura. Contudo, Fryer enfatiza que fatores de confusão para palpação da tendência e alteração de textura do tecido podem ser conseqüências da sensibilização central, como hiperalgesia e alodinia, que ocorrem como um resultado do aumento da excitabilidade dos neurónios nas vias nociceptivas centrais.

O Old Doc e os primeiros desenvolvedores de osteopatia usaram metáforas do materialismo mecanicista para definir a lesão osteopática como um evento monocausal - isto é, com 1 fonte de disfunção. 

Ao longo do tempo, os termos e definições evoluíram, levando à compreensão de hoje da disfunção somática, que é multifacetada. Com a introdução de modelos baseados em evidências, este conceito foi atualizado, moldado e desafiado, com um ponto de vista atual sobre o modelo baseado em nociceptor. As evidências mais atualizadas derivadas da biociência e da medicina levaram a uma interpretação multidimensional incluindo a sugestão de um modelo neurofasciogênico, no qual o papel da fáscia no desenvolvimento de suas características palpáveis é levado em consideração.

 É necessária mais pesquisa colaborativa sobre disfunção somática para adicionar à base de evidências para a prática de osteopatia nos Estados Unidos e osteopatia no exterior.

Interessante essa revisão narrativa da disfunção somática e fica claro que precisamos aprofundar mais os estudos em Sistema Nervoso Autonômico e seus mecanismos de ação para conseguirmos cada vez mais comprovar as nossas correlações das disfunções somáticas com o funcionamento visceral - já publicamos um texto sobre isso aqui - e suas relações com o sistema músculo esquelético. Deve se ainda salientar que o aprofundamento nos estudos dos mecanismos de dor são fundamentais para uma boa compreensão.

Bibliografia

Liem, T. A. T. Still's Osteopathic Lesion Theory and Evidence-Based Models Supporting the Emerged Concept of Somatic Dysfunction. JAOA 2016, 116 (10): 654-661.



Por Leonardo Nascimento










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